Autor: Lucas Nascimento Machado
RESUMO
Em nosso artigo, faremos uma breve exposição sobre o capítulo XXIV (“Exame das Quatro Nobres Verdades”) dos Mūlamadhyamakakārikā (“Versos fundamentais sobre o caminho do meio”), de Nāgārjuna, e buscaremos oferecer uma defesa de nossa própria interpretação de sua filosofia, comparando-a com as interpretações semântica e pedagógica propostas, respectivamente, por Garfield e Siderits, por um lado, e Ferraro, por outro. Na nossa exposição, discutiremos a relação entre vazio, cooriginação dependente e verdade, apontando a íntima ligação entre esses termos no interior da filosofia de Nāgārjuna e buscando indicar em que sentido as quatro nobres verdades do budismo, de acordo com o filósofo, só podem ser verdadeiras se elas forem vazias. A partir dessa análise, esperamos poder estabelecer uma relação entre verdade convencional e verdade suprema, tal como abordada nesse capítulo, segundo a qual tanto a verdade convencional quanto a suprema são vazias, sendo que a diferença entre ambas consistiria em que a primeira diz respeito à existência convencional das coisas, enquanto a segunda diz respeito à ausência de essência delas. Nesse sentido, tratar-se-á de analisar como seria possível, para Nāgārjuna, uma compreensão acerca da verdade que nos parece tão contraintuitiva, a saber, a de que a verdade só é possível se for relativa (no sentido de se inserir na cooriginação dependente de todas as coisas e ser vazia de essência ou natureza própria). Esperamos, assim, fazer uma pequena contribuição para a discussão de alguns dos conceitos mais relevantes do pensamento desse importante filósofo budista, sobretudo no que diz respeito à relação da verdade suprema com o vazio.
Palavras-chave
Verdade; vazio; cooriginação dependente; verdade convencional; verdade última
1 Introdução
Qual a relação entre verdade e absoluto? É comum supor-se que haja uma relação necessária entre esses termos: afinal, algo só poderia ser verdadeiro se fosse absolutamente verdadeiro. A verdade, no seu sentido autêntico, é absoluta, e não admite relativizações. Na emblemática formulação de Hegel: “só o absoluto é verdadeiro, ou só o verdadeiro é absoluto” (Hegel, 2007, p. 72).
Há, é claro, aqueles que julgam essa pretensão a uma verdade absoluta irrealizável, e há muito já exposta em sua inviabilidade. O que, contudo, não implicaria termos de abdicar de falar, em todo e qualquer sentido, de verdades; apenas teríamos que relativizar essas verdades, não as tomando como fatos definitivos e absolutos da realidade, mas sim como fatos que possuem validade dentro de um determinado contexto ou que desempenham o papel de verdade no interior de uma relação em particular.
Ora, uma terceira alternativa é possível, não contemplada por aqueles que julgam a verdade só poder ser absoluta ou aqueles que afirmam a possibilidade de uma verdade relativa. Contudo, ela não deixa de parecer absolutamente impensável para nós: que a verdade, para que possa ser verdade, tenha que ser relativa. Ou, em outras palavras que a verdade só seja verdade porque é relativa, que a condição de possibilidade de que algo seja verdadeiro seja sua relatividade.
Essa possibilidade, pelo que parece, contraria todas as nossas intuições mais elementares sobre o que significa que algo seja verdadeiro. Certamente, podemos conceber que, mesmo que algo não seja verdadeiro em sentido absoluto, que ele o seja em sentido relativo. Mas que a própria verdade só possa o ser por ser relativa, e não apesar de; que a verdade, por ser verdade, tenha que ser relativa, não é uma forma de pensar com que estamos acostumados, ou que pareça-nos dotada de sentido.
Contudo, de acordo com a leitura que queremos propor aqui do XXIV capítulo das Mūlamadhyamakakārikā, os “Versos fundamentais sobre o caminho do meio”, é precisamente essa concepção de verdade que Nāgārjuna defende. Para o filósofo, não se trata apenas de dizer que não podemos atingir uma verdade absoluta, no sentido de algo que seja verdadeiro independentemente de qualquer relação; trata-se, mais do que isso, de dizer que algo só pode ser verdadeiro em relação a alguma outra coisa – a condição de possibilidade da verdade é a sua relatividade, e ela não pode existir enquanto verdade se não existir em relação a outra coisa.
Confessamos, essa não é uma leitura incontrovertida desses versos de Nāgārjuna, como a própria tese de Ferraro1 dá a mostrar. Infelizmente, não poderemos discutir extensivamente todas as objeções que se poderiam fazer à nossa leitura e as respostas que poderíamos aventar a elas. Pareceu-nos, contudo, que valeria a pena fazer uma breve exposição dessa interpretação e uma defesa dela diante de algumas objeções possíveis. Isso porque, apesar de controversa, essa interpretação convida-nos a repensar algumas das nossas concepções mais elementares sobre o que seja a verdade, dando-nos, por esse motivo, muita matéria para reflexão filosófica. Sendo assim, visaremos, aqui, apresentar brevemente uma leitura do capítulo XXIV do Mūlamadhyamakakārikā, de Nāgārjuna, por meio da qual oferecemos uma primeira apresentação de nossa interpretação e na qual estaremos sempre dialogando com as interpretações semântica (de Garfield e Siderits2) e pedagógica (de Ferraro3), também levando em conta e sendo inegavelmente influenciados pela interpretação de Tsong Khapa.4 Visamos, assim, propor uma leitura da teoria das duas verdades, em sua relação com os conceitos de vacuidade e cooriginação dependente, que seja capaz de se dirigir às dificuldades e exigências colocadas pelo debate entre essas interpretações.
2 Contra a acusação de niilismo
Em Mūlamadhyamakakārikā, “Versos fundamentais sobre o caminho do meio”, Nāgārjuna defende, em cada um dos capítulos do livro, que as coisas são vazias. O que significa, contudo, dizer que as coisas são vazias? Sem muitas delongas, podemos dizer que ser vazio, para Nāgārjuna, significa ser desprovido de svabhavā, termo do sânscrito que poderia ser traduzido como essência, substância ou, para falar como Ferraro em sua tese de doutorado, natureza própria. As coisas, de acordo com o filósofo, não têm uma essência que defina como elas são, independentemente de qualquer relação com as outras coisas, que permaneça sempre a mesma e seja eterna, um ser próprio da coisa que subsiste independentemente de sua relação com outras coisas. Ao contrário, aquilo que as coisas são, elas são de forma dependente de outras coisas, em uma relação de dependência recíproca, ou de cooriginação dependente, fora da qual elas não podem existir. Depender de outra coisa para existir significa ser vazio, pois essa dependência equivale à inexistência de uma essência que subsista por si própria. Sendo assim, o percurso dialético da obra é o de mostrar que cada coisa que o oponente imaginário avança como candidato a ter uma essência é, na verdade, vazio, só existindo convencionalmente em uma relação de dependência com outras coisas, fora da qual não poderia existir.
Ora, no capítulo XXIV do MMK, um de seus últimos capítulos, o oponente imaginário de Nāgārjuna coloca o que parece ser uma séria objeção à sua defesa de que tudo seja vazio. Afinal, de acordo com o oponente, se tudo for vazio, as Quatro Nobres Verdades (QNV) ensinadas por Buddha não poderiam existir e, portanto, não poderiam ser verdadeiras.5
As QNV, lembremos, são as seguintes: 1) a verdade do sofrimento (o sofrimento existe); 2) a verdade da causa do sofrimento (que o sofrimento tem uma causa, o desejo); 3) a verdade da cessação do sofrimento (que uma vez cessada a causa do sofrimento – o desejo -, também é cessado o próprio sofrimento); 4) a verdade do caminho para a cessação do sofrimento (que há um caminho que é causa da cessação do sofrimento). Sendo assim, o que o oponente de Nāgārjuna está afirmando é que, se tudo for vazio, então, as QNV não existirão e, portanto, o fundamento dos ensinamentos budistas não existirá. Ora, se as QNV não existirem, também não poderão existir as Três Joias do Budismo: a Sangha (A Comunidade), o Dharma (O ensinamento) e o Buddha, posto que não haverá sofrimento que possa ser cessado por meio da participação na comunidade espiritual que segue o Dharma e, desse modo, atinge a budeidade. Por isso, de acordo com o oponente, Nāgārjuna está negando “o inteiro intercurso mundano” e contradizendo o ensinamento budista.6 Ao adotar uma postura que, segundo o oponente, é uma postura niilista, já que afirmar que tudo é vazio equivaleria a dizer que nada existe, Nāgārjuna tornaria impossível a iluminação, indo precisamente contra o ensinamento budista que, supostamente, visava defender.
Ora, a primeira réplica de Nāgārjuna a essa acusação é afirmar que seu oponente, simplesmente não entendeu a vacuidade, o seu propósito e o seu sentido. Para defender-se da acusação de niilismo, portanto, Nāgārjuna terá que esclarecer o propósito e o sentido da vacuidade – e é para tanto que entraremos na discussão sobre as duas verdades, tão fundamentais para o budismo e para a compreensão deste capítulo da obra do filósofo.
3 As duas verdades e a vacuidade
Os versos 8 e 9 oferecem o início da explicação de Nāgārjuna sobre a vacuidade. Neles, Nāgārjuna diz:
O ensinamento da Lei dos Buddhas é baseado em duas verdades: a verdade ordinária do mundo e a verdade última
Os que não entendem a diferença entre essas duas verdades, não entendem a realidade [presente] no profundo ensinamento do Buddha (Nāgārjuna apudFerraro, 2012, p. 313, §§8-9)
Para que a compreensão da vacuidade não seja equivocada, é preciso compreender que os ensinamentos dos Buddhas são baseados em duas verdades, e é preciso distinguir muito bem essas duas verdades. Contudo, como veremos, é igualmente necessário compreender a relação entre elas.7 Com efeito,
Sem basear-se no convencional [quer dizer, na verdade ordinária, convencional], o plano supremo [quer dizer, o da verdade última] não é mostrado; sem ter realizado o plano supremo, o nirvana não pode ser alcançado (ibidem, p. 313, §10)
Ora, vemos assim que, apesar de as duas verdades terem que ser bem distinguidas, é igualmente fundamental relacioná-las, pois a verdade última não pode ser mostrada sem fundamentar-se na verdade convencional. Mas o que poderia significar isso, exatamente? Continuemos seguindo o texto, antes de nos arriscarmos a uma resposta. A seguir, Nāgārjuna afirma que um mau entendimento da vacuidade pode destruir uma pessoa de pouca inteligência. Por essa razão, de que o Dharma – que, ao que tudo indica, aqui, é o ensinamento da vacuidade – é difícil de entender (e, por isso, pode levar o homem de pouca inteligência a ser destruído), Buddha hesitou quanto à possibilidade de ensiná-lo. No entanto, as acusações do oponente são falaciosas – para aquele que bem compreender a vacuidade, tudo se tornará claro, ao contrário de para aquele que não entende a vacuidade, para o qual nada será claro. Com efeito, seria por não ter compreendido a vacuidade que o oponente acusava Nāgārjuna de ter cometido o erro de negar as QNV – erro que, segundo Nāgārjuna, pertence, em verdade, ao próprio oponente, em função de sua incompreensão da vacuidade. É a partir daqui, então, que Nāgārjuna explicará porque é o oponente, e não ele, que pode ser acusado de niilismo:
Se tu consideras a existência real dos entes em termos de natureza própria, logo, tu vês as coisas desprovidas de causas e condições
E renegas o efeito, a causa, o agente, o meio, a ação, o surgimento, a cessação e o fruto (ibidem, p. 314, §§16-17)
Ora, Nāgārjuna afirma aqui que se, tal como o oponente quer, as coisas só podem existir se tiverem uma essência, então, não será possível estabelecer entre elas uma relação de causalidade e dependência; afinal, se as coisas são, na verdade, essências, que permanecem sempre as mesmas e são o que são independentemente umas das outras, como seria possível haver qualquer relação de causa e efeito entre elas? Como qualquer efeito, causa, ação, surgimento ou cessação seria possível, posto que pressupõem uma mudança das coisas que não podem, portanto, permanecer as mesmas? Sendo assim, para que efeitos e causas sejam possíveis e para que as coisas surjam e cessem a partir de condições, é necessário que elas sejam desprovidas de essência. Ora, mas não ter essência significa, justamente, ser vazio. Por isso, vemos Nāgārjuna afirmar, em um dos seus versos mais marcantes e conhecidos, que
O que é a “cooriginação dependente” nós chamamos de “vacuidade”; essa é uma convenção dependente, e isso mesmo é o caminho do meio.
Já que não existe nenhum dharma que não seja cooriginado em dependência, também não existe nenhum dharma que não seja vazio (ibidem, p. 314, §§18-19)
Vemos, então, como Nāgārjuna vira a acusação de seu oponente contra o próprio; para o oponente, se tudo fosse vazio, disso se seguiria que as QNV não poderiam existir.8 Nāgārjuna, no entanto, mostra que exatamente o oposto é verdadeiro, quer dizer, se as coisas não fossem vazias, as QNV não poderiam existir, posto que todas elas só são possíveis na medida em que existem em uma relação de causalidade. De fato, a segunda verdade relaciona-se com a primeira e a quarta com a terceira como causa e efeito, pois o desejo é a causa do sofrimento e o caminho óctuplo é a causa da cessação do sofrimento. Ora, para que haja uma relação de causa e efeito entre essas verdades, é preciso que elas sejam vazias – afinal, se o sofrimento fosse uma essência, ele não necessitaria de causa, existindo independentemente do desejo, e não poderia cessar por meio do caminho óctuplo, posto que uma essência não pode deixar de existir. E, como as QNV são condição de possibilidade para as Três Joias do Budismo, a Sangha, o Dharma e o Buddha, estas também só são possíveis se se encontram em uma relação de causa e efeito com as QNV e, portanto, são elas mesmas vazias. Afinal, se os frutos das ações que visam à iluminação fossem, por essência, não realizados e, portanto, não existissem, como alguém poderia vir a obtê-los? E, se ninguém pudesse vir a obtê-los, como poderia haver a comunidade espiritual daqueles que se esforçam por obtê-los? E como poderia haver o Dharma se não houvesse as QNV, que só podem existir, como já vimos, se forem vazias? Se o Buddha e a iluminação fossem essências, como poderia o Buddha surgir a partir da iluminação, sendo, em essência, independente dela? E como poderia alguém que, por essência, não fosse iluminado, vir a ser iluminado ao praticar o caminho? Por esses motivos, Nāgārjuna afirma que
Se tu confutas a vacuidade no sentido de cooriginação dependente, tu confutas a inteira ordem prática do mundo [quer dizer, a ordem das convenções, que nada mais é, aqui, do que aquela à qual as QNV se aplicam]. […]
Quem vê a cooriginação dependente vê tudo isso: a dor, o seu surgimento, a sua extinção e o caminho. (ibidem, p. 316, §36 e §40)
Assim, chegamos ao fim do capítulo com a surpreendente inversão de Nāgārjuna: não é considerar todas as coisas vazias que faria com que as QNV não pudessem existir, mas sim, pelo contrário, não as compreender em termos de sua vacuidade. As QNV não são verdades porque são essências ou verdades absolutas, no sentido de serem verdadeiras independentemente de qualquer outra coisa e serem, por sua natureza própria, verdades. Ao contrário, elas só são verdades porque são relativas, quer dizer, porque dependem mutuamente umas das outras e não existem como verdades autônomas e independentes (lembremos: a segunda verdade é causa da primeira, e a quarta, da terceira). Se não fossem relativas umas às outras e não tivessem umas às outras como condição de sua possibilidade em uma cooriginação dependente, essas verdades sequer poderiam existir, posto que só podem existir em uma relação de causa e efeito se não tiverem nenhuma essência, quer dizer, se não permanecem sempre as mesmas, existindo independentemente de qualquer outra coisa, o que as impossibilitaria de causarem ou serem causadas umas pelas outras. É condição de possibilidade dessas verdades, para que existam como verdades, que se relacionem com algo outro do que si próprias e só existam em função dessa relação, sendo, nesse sentido, relativas.
4 Comentário de nossa interpretação e defesa contra possíveis objeções
A essa altura de nosso texto, alguém poderia objetar a nossa interpretação: podemos aceitar que as QNV sejam relativas; de fato isso não aparenta ser problemático. O problema, contudo, está em julgar que, porque essas verdades são relativas, então todas as verdades devem o ser. Afinal, não é esse o sentido da distinção que Nāgārjuna faz entre os ensinamentos baseados em duas verdades, a verdade convencional e a verdade última, tal como Ferraro propõe? Não estaria a verdade última, nesse caso, para além dessa relatividade, mesmo que, de algum modo, o ensinamento baseado nela – o vazio, que o próprio Nāgārjuna afirma ser uma convenção dependente – não esteja?
A essa objeção, responderíamos o seguinte: enquanto cabe fazer alguma espécie de distinção entre a verdade última e a verdade convencional, entender que essa distinção esteja em que, enquanto no plano da primeira tudo é relativo, no plano da segunda, em contrapartida, nada o é, seria precisamente um dos principais equívocos de que Nāgārjuna tenta nos precaver, ao lembrar que o próprio vazio é uma convenção dependente. A diferença, pelo que nos parece, é uma diferença de perspectiva: enquanto o plano dos ensinamentos baseados na verdade convencional diz respeito à existência convencional das coisas – a saber, as QNV -, o plano dos ensinamentos baseados na verdade última diz respeito à inexistência essencial das mesmas – quer dizer, ao fato de elas serem vazias, ou, mais especificamente, vazias de essência.
Ora, mas, se é assim, poderiam nos perguntar: se essa é a única diferença entre verdade convencional e verdade última, então, por que chamar a esta de “última”? Aqui, arriscamos a seguinte hipótese: a de que a verdade convencional é a que versa sobre a existência ou inexistência convencional das coisas, e não sua existência essencial, ao passo que a verdade última é a que versa sobre a existência ou inexistência essencial das coisas, e não sua existência convencional. Concebendo desse modo a distinção, evitamos cair em contradições como a da afirmação de que a verdade última é a de que não há verdade última,9 tal como Ferraro acusa a interpretação semântica de Garfield de cair e a qual Garfield julga ser necessária para a compreensão de Nāgārjuna.10 Por certo, há uma verdade última, quer dizer, uma verdade sobre a existência última das coisas; mas a verdade última é a de que não há essências, e isso vale, inclusive, para a própria verdade última: ela mesma não é uma essência, porque ela mesma é relativa, quer dizer, vazia.11 Assim, também o recurso de Nāgārjuna à distinção entre as duas verdades no MMK.24 é esclarecido: é por não compreender que negar a existência última das coisas, quer dizer, afirmar que elas são vazias, não é o mesmo que negar a sua existência inteiramente, que o oponente de Nāgārjuna julga que ele esteja negando que as coisas existam em qualquer sentido, e não apenas como essências. No entanto, Nāgārjuna, ao apontar tanto para a distinção quanto para a relação entre as duas verdades, visa indicar, justamente, que só é possível estabelecer a existência das coisas (tal qual a verdade convencional o faz) se se negar que elas existam essencialmente (tal qual a verdade última o faz). Portanto, negar a existência essencial das coisas não é o que torna impossível que elas existam, mas, muito pelo contrário, é a condição unicamente pela qual a sua existência pode ser concebida sem contradição ou absurdo. Interpretação essa que, mais uma vez, parece-nos adequar-se perfeitamente ao MMK.13.36, em que Nāgārjuna afirma que negar a vacuidade é negar todo o intercurso mundano.
Concebemos, desse modo, também, qual deve ser a relação entre verdade convencional e verdade última, em perfeita consonância com o texto: a verdade convencional e a verdade última se encontram, elas mesmas, em uma relação de dependência mútua, de cooriginação dependente entre si. O que nos parece estar de pleno acordo com o verso 10 do capítulo: “Sem basear-se no convencional, o plano supremo não é mostrado; sem ter realizado o plano supremo, o nirvana não pode ser alcançado” (Nāgārjuna apudFerraro, 2012, p. 313).
Poder-se-ia, aqui, objetar, seguindo a interpretação de Ferraro,12 que estamos confundindo as duas verdades com os ensinamentos que se baseiam nelas. Pois, decerto, as QNV e a vacuidade, sendo elas mesmas vazias e convencionais, encontram-se em uma relação de cooriginação dependente; disso não se segue, contudo, que os próprios planos em que elas se baseiam se encontrem na mesma relação de algum modo.
A isso, responderíamos, primeiramente, que não nos parece que o uso do verbo “basear-se” tenha que carregar todo o peso interpretativo que Ferrarro atribui a ele no MMK.24.8. Afinal, se, por um lado, o uso desse verbo pode indicar que há uma diferença entre o ensinamento de Buddha e aquilo em que ele se baseia, por outro, poder-se-ia igualmente compreender que esse uso apenas indica o que está na base do ensinamento, e não que a base seja algo à parte do próprio ensinamento, da mesma maneira que não dizemos que os fundamentos de um edifício, por serem o seu fundamento, são algo distinto e separado do próprio edifício.
Em segundo lugar, e o que é mais importante, mesmo que concedamos que o peso atribuído por Ferraro ao uso “basear-se em” seja adequado e que essa leitura seja mais apropriada, isso não exime o plano da verdade última de ser, ele mesmo, vazio. Pois como seria possível que algum ensinamento se baseasse em um plano de verdade, sem que esse mesmo plano estivesse em uma relação com ela e, portanto, não fosse essencial, mas sim vazio e relativo?13 A mesma pergunta que Nāgārjuna faz quanto às QNV podemos fazer quanto ao plano da verdade convencional e ao plano da verdade última; como seria possível um ensinamento se basear nesses planos, se esses próprios planos não fossem vazios?
No entanto, talvez ainda pudessem nos acusar de outro descuido: pois é certo que Nāgārjuna afirma, em vários momentos, não ter posição alguma, e alerta-nos, como é próprio ao budismo, que o ensinamento do vazio, um dos ensinamentos mais importantes de Buddha, não deve, contudo, ser tomado como um fim em si mesmo, como uma verdade absoluta à qual devemos nos apegar. Muito pelo contrário, este ensinamento deve ser visto como uma jangada, a qual usamos apenas para atravessar o rio, sem carregá-la conosco depois de tê-lo atravessado. Ora, não seria afirmar que a verdade última é vazia esquecer a função meramente instrumental do vazio, supondo que ele é alguma espécie de realidade superior quando, na verdade, ele seria apenas um instrumento pedagógico o qual deve ser tanto utilizado quanto abandonado para que se possa compreendê-la?
Certamente, essa objeção, levantada por Ferraro às leituras metafísicas e semânticas de Nāgārjuna, merece muita atenção, pois se trata sem dúvida de um aspecto fundamental do ensinamento de Buddha o qual Nāgārjuna buscaria esclarecer. Mas, no que diz respeito à nossa leitura, parece-nos que não caímos no equívoco apontado por Ferraro: pois são duas coisas inteiramente diferentes dizer que a verdade última é vazia e dizer que ela é o vazio. Dizer que a verdade última é o vazio seria, sem dúvida, cair na armadilha de reificar a vacuidade, ou pelo menos correr o risco de cair nessa armadilha ao formular a verdade última dessa forma, sendo levado a tomar a vacuidade como uma essência à qual a verdade última poderia ser identificada e à qual poderíamos nos apegar como algo de permanente. Contudo, dizer que a verdade última é vazia é fazer exatamente o oposto: é lembrar-nos de que a verdade última não tem uma essência e, portanto, não pode ser identificada essencialmente com nada – nem mesmo o próprio vazio – de tal modo que não há razão para se apegar a ela, como se ela fosse a essência de todas as coisas.
Poderíamos ainda, contudo, pensar, tal como Ferraro sugere, que Nāgārjuna gostaria apenas de nos apontar o perigo de julgar que as coisas individuais possuem essência, enquanto a verdade última, entendida como a totalidade da realidade, poderia, ela mesma, ter uma essência.14 Afinal, a vacuidade, embora seja ela mesma vazia, não é a própria verdade última – e, portanto, do fato que vacuidade é vazia não se segue que a própria verdade última tenha que o ser. Contudo, parece-nos que nesse caso estaríamos esquecendo que atribuir essências é individualizar, quer dizer, o que faz que uma coisa individual seja posta enquanto tal é a atribuição de uma essência a ela. Afinal, lembremos, uma essência é justamente aquilo que existe por si mesmo, separadamente e independentemente de outras coisas, e, portanto, individualmente. Por isso, não seria possível que a totalidade da realidade tivesse uma essência sem que, assim, fosse individualizada – e, sendo uma essência individual (expressão, como vimos, redundante), vulnerável às críticas de Nāgārjuna a tudo que se pretenda que tenha uma essência individual.15 Assim, por certo, a verdade última não é o vazio, posto que isso significaria afirmar que a essência dela é o vazio; contudo, parece-nos, é certo que verdade última é vazia, posto que não pode ter nenhuma essência. Dizer que a verdade última é vazia não equivale a identificá-la com o vazio – muito pelo contrário, equivale a dizer que nenhuma identificação, entendida como uma atribuição de essência, lhe é possível. Uma interpretação que nos parece estar perfeitamente de acordo com a afirmação de Nāgārjuna, aparentemente paradoxal, feita em outro capítulo do livro, de que não se pode dizer de nada que seja nem vazio, nem não vazio, nem ambos, nem nenhum dos dois. Que as coisas sejam vazias quer dizer que elas não são, essencialmente, o próprio vazio, ou seja, não podem ser identificadas com o próprio vazio – as coisas são vazias, mas não são o vazio, como se esse fosse a sua essência. E não é, tal como defende Ferraro, pelo fato de a verdade última não ser vazia que não devemos nos apegar à vacuidade das coisas, posto que essa vacuidade seria apenas uma convenção; ao contrário, é o fato de ela ser vazia que faz com que não nos apeguemos à sua própria vacuidade, já que a vacuidade significa, simplesmente, essa ausência de natureza própria das coisas, mesmo que essa natureza própria fosse concebida como o próprio vazio. E, caso não se conceba a verdade última como vazia, restará algo a que ainda conceberemos como essência, o que implica, como indicamos antes, conceber a algo como uma essência individual, o que leva ao apego a essa mesma essência e, portanto, ao sofrimento.
Assim, quer falemos da verdade convencional, quer falemos da verdade suprema, embora não possamos dizer que elas são o vazio, podemos dizer que são ambas, igualmente, vazias. Mais do que isso, são vazias porque se encontram em uma relação de dependência mútua, de cooriginação dependente. Daí a sua equivalência, entendida enquanto dependência e condicionamento mútuo, e não a sua identidade. Não se trata, como diz Ferraro da interpretação semântica, de afirmar que exista apenas uma verdade, a saber, a verdade convencional. Quando falamos de verdade “convencional” e verdade “última”, não as estamos distinguindo segundo a realidade dessas próprias verdades, mas sim segundo o plano de existência a que elas se referem. Nesse sentido, são, autenticamente, duas verdades distintas – pois uma é uma verdade que tem por objeto a existência convencional das coisas, e outra a existência essencial delas. Ocorre, contudo, que, se a primeira verdade, que tem por objeto a existência convencional, atribui essa existência às coisas, ao “intercurso mundano”, a segunda verdade, que tem por objeto a existência essencial, quer dizer, que nos fala sobre a existência essencial das coisas, nega que qualquer coisa exista desse modo. Trata-se de uma verdade sobre esse modo de existência, que nega a sua possibilidade real, quer dizer, que nos diz, acerca desse modo de existência, que ele não se aplica a nenhuma coisa de fato. Contudo, disso se segue que tanto a verdade convencional quanto a verdade última, embora se refiram a modos de existência distintos, são, contudo, segundo o seu próprio modo de existência, igualmente convencionais, quer dizer, igualmente vazias.16 Pelo que se pode compreender porque, no MMK.25, Nāgārjuna afirmará não haver distinção alguma entre nirvana e samsara, posto que só há uma realidade, que é vazia e convencional, a qual tanto a verdade convencional quanto a verdade última descrevem sob ângulos distintos, mas que se implicam mutuamente. É uma e a mesma realidade que existe segundo o modo convencional e, portanto, não existe segundo o modo essencial.17 E a verdade como um todo – quer em referência ao plano supremo, quer em referência ao plano convencional – só pode existir nessa realidade, por conseguinte, se for vazia – quer dizer, relativa.18
Poderiam, porém, ainda objetar: afirmar que a verdade última é vazia não seria, ainda, esquecer do papel meramente instrumental do ensinamento da vacuidade – que, como mero instrumento, poderia ser abandonado a favor de outros ensinamentos, dependendo de quem fosse o pupilo, mesmo que esse ensinamento contradissesse a vacuidade? No entanto, mais uma vez, insistiríamos: é porque a verdade última é vazia que mesmo esse ensinamento sobre a realidade poderia ser abandonado; pois, se a verdade última é vazia, isso significa, precisamente, que não há de se apegar a ela como a uma verdade absoluta que, portanto, tem que ser necessariamente ensinada em todo e qualquer contexto. Também a verdade última é relativa, precisamente porque ela afirma a inexistência de essências. Porque inexistem essências, inexiste um ensinamento definitivo sobre a realidade, o que justifica que ensinamentos distintos e mesmo incompatíveis sejam transmitidos para pessoas diferentes com necessidades diferentes. De fato, é unicamente essa compreensão da realidade que justifica que ela seja qualificada como não discursiva; pois trata-se de uma compreensão que coloca, precisamente, a impossibilidade de definir a realidade de qualquer forma absoluta. Essa é uma das mudanças de perspectiva mais radicais que Nāgārjuna exige de nós: que deixemos de achar que as coisas só podem ser reais se tiverem uma essência ou natureza própria, e que o real só pode ser real se for substancial e puder ser definido de uma forma absoluta, segundo a sua substância. É preciso, pelo contrário, deixarmos de julgar que a realidade não possa ser pensada independentemente da categoria de substância individual, e que a existência convencional das coisas só possa ser concebível com base na dependência de algo substancial.19A realidade das coisas não pode e não deve ser confundida com sua substancialidade, como se o real fosse definido pela substancialidade. Pelo contrário: é por a realidade das coisas só ser possível se elas não forem dotadas de substância, que qualquer verdade, quer sobre a existência convencional das coisas, quer sobre a inexistência última delas, só poderia ser, segundo sua existência e realidade, ela mesma vazia e, portanto, não poderia ser algo absoluta e incondicionalmente real que precisasse, por isso mesmo, ser ensinado incondicionalmente a todos. Nesse sentido, não há ensinamento que possa ser ensinado, se entendermos, por isso, um ensinamento que nos propicia uma verdade incondicionada sobre a realidade; por isso “Nenhum Dharma foi ensinado pelo Buddha, em qualquer tempo, em qualquer lugar, a qualquer pessoa”.20 Não por outro motivo, Nāgārjuna afirmará não ter nenhuma posição; pois ter uma posição implicaria julgar-se capaz de oferecer uma descrição essencial da realidade, uma descrição que seja absolutamente válida e, portanto, não possa ser meramente relativa. Ora, mas se toda verdade, para existir, tem que ser relativa, então, nenhuma verdade pode ser absolutamente válida. Talvez aí resida um dos pontos mais difíceis de se compreender em Nāgārjuna, ou, pelo menos, em nossa interpretação dele, mas que julgamos, ao mesmo tempo, ser um dos pontos em que mais vale a pena se deter: para que algo seja verdadeiro, é necessário não poder prová-lo, ou, ainda, só é possível apreender uma verdade na medida em que se abdica de querer demonstrar sua validade absoluta. Daí por que o nirvana deve ser compreendido como a cessação de todas as posições, e por que Nāgārjuna deve afirmar não ter posições, pois só se pode apreender a verdade, se se abandona a pretensão não apenas de demonstrá-la, mas também de concebê-la como algo cuja validade é absoluta.21 Essa, acreditamos, é uma das transformações mais radicais de nossa concepção usual da verdade à qual Nāgārjuna nos submete e a qual exige para poder ser compreendido.
5 Conclusão
Prometemos, no início desse texto, algo que certamente não fomos capazes de cumprir de maneira completamente satisfatória, dadas as limitações de tempo e espaço. Contudo, a partir de nossa breve exposição, gostaríamos de sugerir o seguinte: Nāgārjuna propõe-nos, em vez de perguntarmo-nos o que as coisas são, perguntarmo-nos em relação a que as coisas são. Esse é o deslocamento que faz com que mesmo a verdade tenha que ser pensada em termos relativos e, mais do que isso, tenha como condição de possibilidade de sua existência ser relativa. Talvez daí uma das afirmações mais surpreendentes feitas por Nāgārjuna, no capítulo seguinte ao que discutimos neste trabalho: a de que não há diferença alguma entre saṃsāra e nirvana.22 Para concluir, gostaríamos de propor uma forma de interpretar essa afirmação, bem como a afirmação de que a verdade tem que ser relativa, que me parece ilustrar muito bem o que tentamos expor aqui.
Em seu livro “A redescoberta da mente”,23 Searle defende a tese, aparentemente trivial, de que a mente é física. Contudo, surpreendentemente, ele não se considera um materialista. E por que não se considera? Porque julga que o conceito de físico do materialista é muito restrito. Para o materialista, dizer que a mente é física equivaleria a dizer que a mente nada mais é do que processos cerebrais, interações entre neurônicos em complexos processos neurológicos. O materialista não concebe que a mente seja, em seus próprios termos, física. Ao contrário, para que ela seja considerada física, ela precisa ser identificada com alguma outra coisa. No entanto, é exatamente essa pressuposição que Searle pretende negar: a pressuposição de que a mente não pode ser considerada, em seus próprios termos, física. Para Searle, portanto, dizer que a mente é física não equivale a dizer que ela não exista em seus próprios termos, como se o mental tivesse que ser necessariamente entendido, em seus próprios termos, como oposto ao físico. Ao contrário dizer que a mente é física equivale a dizer que a consciência, enquanto aquilo que nós usualmente compreendemos que ela seja, é física, não porque se reduz a um fenômeno físico, mas sim porque é, ela própria, um fenômeno físico. Portanto, ela não se opõe àquilo que é da ordem do físico, mas, pelo contrário, existe, exatamente como é para nós, dentro do universo físico. Desse modo, a mente é redescoberta ao nos darmos conta de que afirmar a sua fisicalidade não significa negar a sua existência enquanto mental.
Tendo isso em vista, gostaria de sugerir que, de modo semelhante Nāgārjuna propõe-nos uma redescoberta do mundo. Pois, como sabemos, da mesma forma que nos é natural opor o mental ao físico, foi sempre muito natural opor o saṃsāra ao nirvana, o mundo das convenções, relativo e condicionado, à iluminação liberadora. Como se esta última, para poder ser uma iluminação e uma liberação, tivesse que pertencer a uma realidade oposta à realidade condicionada do saṃsāra, onde impera a cooriginação dependente. Segundo essa compreensão, a afirmação de que não há diferença entre o saṃsāra e o nirvana poderia ser entendida como a afirmação de que não existe iluminação; de que aquilo que a iluminação, tal como a compreendemos, não existe, e tudo que há é, na verdade, o saṃsāra.
Contudo, Nāgārjuna, parece-nos, pretende mostrar, justamente, que não há que se supor que a iluminação se oponha ao saṃsāra, como se uma realidade condicionada fosse necessariamente oposta a uma iluminação liberadora; ao contrário, o nirvana é perfeitamente possível nessa mesma realidade, a ponto de não haver mesmo qualquer diferença entre o saṃsāra e nirvana. Partíamos da suposição que tínhamos que abandonar o saṃsāra, por sua condicionalidade e relatividade, para alcançar o nirvana; contudo, descobrimos que é nessa condicionalidade e relatividade mesma que o nirvana se dá! A verdade última, muito antes de não poder ser relativa, tem que ser relativa para que seja verdadeira – e se é a relatividade do saṃsāra que faz dele o que ele é, então, já que também é a relatividade da verdade última que faz dela o que ela é, não há de se supor que haja qualquer diferença entre eles.24 Assim, redescobrimos o mundo ao compreendermos que a iluminação, que supúnhamos ser possível apenas fora dele, deve ser encontrada nele mesmo. E um convite mais instigante para voltarmo-nos de volta para o mundo e envolvermo-nos novamente com ele, em toda sua relatividade, ou, para colocarmos em termos mais estritamente budistas, em toda sua impermanência, dificilmente encontraríamos em outro lugar.
- Agradeço imensamente ao Dr. Giuseppe Ferraro, pelas conversas e recomendações, bem como pelo apoio, auxílio e estímulo para o desenvolvimento e submissão deste artigo, sem os quais certamente ele não teria sido possível.
- 1Ferraro, 2012.
- 2Garfield, 2009.
- 3Ferraro, 2013b.
- 4Tsong Khapa, 2006.
- 5“Se tudo isto é vazio, [então,] não há surgimento nem cessação; isso significa, para ti, a não existência das Quatro Nobres Verdades” (Nāgārjuna apud Ferraro, 2012, p. 312, §1).
- 6“[…]Falando assim da vacuidade, tu, de fato, renegas as três joias, a existência real dos frutos, a diferença entre o errado, o reto e o inteiro intercurso mundano” (ibidem, p. 312, §§5-6).
- 7Um ponto que, a nosso ver, não é tratado de maneira completamente satisfatória pela interpretação pedagógica de Ferraro; pois, se, segundo essa interpretação, os ensinamentos baseados na verdade convencional são aqueles que são construídos respeitando, entre outras, a categoria de substância individual (Ferraro, 2013b, p. 575), e os ensinamentos baseados na verdade última são aqueles que “contradizem as principais categorias lógicas nas quais a verdade ordinária está baseada” (ibidem, p. 576), então, por mais que Ferraro afirme que o fato de a verdade convencional ser “necessária e indispensável para obter” a verdade última (ibidem, p. 582) é completamente compatível com a interpretação pedagógica, fica, contudo, no mínimo problemática a explicação sobre por que e em que sentido a apreensão da verdade última dependeria da apreensão da verdade convencional. E, por mais que Ferraro afirme que “o caminho formativo budista tem que em todo caso começar com os ensinamentos baseados na verdade convencional”, já que “apresentar imediatamente” os ensinamentos baseados na verdade última para os discípulos sem noções dos ensinamentos baseados na verdade convencional “poderia ser enganoso e prejudicial” (ibidem, p. 582), não fica claro por que, se ambos os ensinamentos seriam pedagogicamente equivalentes, haveria a necessidade de uma passagem de um ensinamento para o outro, nem como essa passagem seria possível. Pois como seria não apenas possível, mas mesmo necessário, ter uma compreensão substancialista das coisas (tal como Ferraro afirma que seja a compreensão baseada na verdade convencional) para que se possa atingir uma compreensão não substancialista delas, a não ser que a primeira compreensão já envolva alguma espécie de desubstancialização das coisas a partir da qual se fosse adquirindo gradativamente uma posição cada vez menos “não substancialista”, caso no qual não se poderia afirmar que uma compreensão substancialista e uma compreensão não substancialista são pedagogicamente equivalentes? E, supondo que ambas as compreensões, ou ambos os ensinamentos baseados em planos de verdade distintos, fossem pedagogicamente equivalentes, por que haveria a necessidade da passagem de um para outro? Como se poderia explicar essa passagem, a não ser assumindo que a vacuidade não é um ensinamento meramente alternativo ao ensinamento das QNV, mas sim indissociável de uma verdadeira compreensão desse ensinamento? Parece-nos que, ou bem Ferraro teria que admitir que o sentido do uso pedagógico desses ensinamentos distintos, ao considerar-se a passagem necessária de um deles ao outro, só pode ser compreendido por meio de uma desubstancialização progressiva da nossa compreensão do mundo – caso no qual uma compreensão substancialista não poderia ser pedagogicamente equivalente a uma compreensão não substancialista, sendo a última precisamente aquela que se busca atingir; ou, tal como defendemos, precisaria admitir que ambos os ensinamentos, embora distintos, só podem ser compreendidos em sua relação recíproca e em sua igual vacuidade. O que nos parece se encaixar de maneira mais satisfatória com a argumentação de Nāgārjuna no MMK.24, na qual ele se esforça por demonstrar como uma concepção substancialista das QNV se enredaria em contradições e seria insustentável. Argumentação que, diga-se de passagem, Ferraro não aborda nem explica em suas exposições da interpretação pedagógica, o que, a nosso ver, reforça a tese de que essa interpretação se envolve em dificuldades significativas quando tenta explicar não a diferença, mas sim a relação entre as duas verdades, e o porquê de haver uma relação necessária entre elas.Além disso, que Ferraro tome os ensinamentos baseados na vacuidade como contradizendo aos ensinamentos baseados nas QNV certamente faz com que seja incompreensível, desse ponto de vista, como a verdade convencional poderia expressar a verdade última (ibidem, p. 582); contudo, acreditamos que é supor que a verdade última contradiga a convencional que seja insustentável do ponto de vista do texto, como se deixaria mostrar pela argumentação de Nāgārjuna. O que não significa, a nosso ver, que a verdade convencional expresse a verdade última, mas sim que ambas se implicam mutuamente, posto que as coisas existem convencionalmente (segundo a verdade convencional) se e somente se são vazias (segundo a verdade última).
- 8O que, a nosso ver, constitui-se como uma séria objeção à interpretação pedagógica proposta por Ferraro, no que diz respeito à sua compreensão da verdade convencional e do plano da verdade convencional. Isso pois, enquanto Ferraro defende que os ensinamentos baseados na verdade convencional sejam aqueles que se apoiam na e respeitam a categoria de substância individual (Ferraro, 2013b, p. 575), o que o texto aqui parece indicar é, pelo contrário, que o ensinamento baseado na verdade convencional, as QNV ou o “intercurso mundano” é insustentável segundo uma concepção substancialista, que concebesse aos objetos como dotados de uma substância própria. De fato, esse é o movimento que parece fundamental para a estratégia de Nāgārjuna para responder ao seu oponente: enquanto este afirma que, se tudo for vazio, as QNV não poderiam existir, Nāgārjuna afirma, pelo contrário, que é compreender as QNV como dotadas de substância que tornaria insustentável, contraditória e inconcebível a sua existência, e mostra a seguir todas as contradições que adviriam de conceber as QNV como dotadas de substância. O que, com efeito, parece-nos ser a estratégia recorrente do MMK: não apenas de dizer que, no plano da verdade última, as coisas são vazias, mas também de dizer que o convencional só pode ser adequadamente compreendido como convencional se não for compreendido por meio da categoria de substância individual ou de natureza própria. Assim, parece difícil sustentar a tese de que na verdade convencional o conceito de natureza própria tenha validade, posto que todos os esforços de Nāgārjuna parecem se dirigir à demonstração de que a concepção substancialista das coisas só pode levar a contradições, e que, portanto, as coisas convencionais só podem ser concebidas de qualquer modo (e, portanto, também segundo o modo dos ensinamentos baseados na verdade convencional) se forem concebidas como vazias, quer dizer, desprovidas de substância. Mais do que isso, sem essa compreensão do convencional, torna-se extremamente difícil compreender como o recurso ao vazio, no capítulo 24 do MMK, poderia ter qualquer papel para responder à objeção do interlocutor de Nāgārjuna – pois Nāgārjuna não diz apenas que a compreensão do vazio é distinta da compreensão do convencional, mas também que unicamente pela compreensão adequada do vazio o convencional poderia ser sustentado.Cabe observar também que, ao que nos parece, Ferraro parte do pressuposto que, para poder compreender as coisas individualmente, é preciso compreendê-las como dotadas de substância, o que faria com que, no plano da verdade convencional, essa categoria tivesse que valer; contudo, parece-nos que a proposta de Nāgārjuna seria exatamente a contrária: só se pode conceber a existência das coisas, a sua identidade e a sua diferença entre si, se elas não forem concebidas como uma substância ou como dotadas de natureza própria, mas sim como tendo uma existência meramente convencional, dependentes das relações que traçam entre si. Motivo pelo qual, mesmo no plano da verdade convencional, a categoria de substância seria insustentável – e, mais do que isso, contrariaria a própria noção de convencional – pois o convencional é, precisamente, aquilo que não tem uma essência ou uma natureza própria, mas sim existe de modo apenas dependente de outro. Nesse sentido, o capítulo do MMK sobre o movimento seria já um ótimo indício de como, mesmo no plano convencional, as coisas não podem ser concebidas como dotadas de substância, posto que, se o movimento fosse assim concebido, ele seria impossível, tal como o percebemos no curso ordinário de nossas vidas.
- 9Não que julguemos que Garfield, ao defender uma proposição contraditória como essa como uma interpretação adequada de Nāgārjuna, esteja propondo uma posição insustentável, haja vista seu recurso à lógica paraconsistente (Garfield e Siderits, 2013, p. 659), mas sim porque acreditamos, como Ferraro (2014, p. 457), que o recurso à contradição e a proposições paradoxais é desnecessário para a interpretação de Nāgārjuna. Mais do que isso, parece-nos interessante que a filosofia de Nāgārjuna possa ser compreendida como estando não apenas além das dicotomias comuns entre ser e não ser, existência e não existência, identidade e diferença, mas também além da própria contradição como meio para lidar com a oposição entre esses extremos e realizar a mediação entre eles.
- 10Ferraro, 2012, Cap. 4.2.2.
- 11Desse modo, conseguimos aproximar ainda mais a posição de Nāgārjuna da posição dos pirrônicos, e torná-la tão consistente quanto. Sobre a relação entre budismo e pirronismo, cf., por exemplo, Kuzminski, 2010.
- 12Ferraro, 2012, cap. 3.
- 13Em relação a esse ponto e no que diz respeito à causalidade em Nāgārjuna, podemos dizer que concordamos com Ferraro, por um lado, quando este afirma que o ensinamento da causalidade baseado no plano da verdade última seja aquele que “apresenta a ideia de uma causalidade mútua (x↔y)”, mas discordamos que, no plano dos ensinamentos baseados na verdade convencional, “a causalidade transitiva, segundo a qual x causa y (x→y)” (Ferraro, 2013b, p. 574.) seja válida em oposição à causação mútua. De fato, pelo próprio MMK.1, que Ferraro cita em seu artigo, parece difícil sustentar que Nāgārjuna defenda que a causalidade poderia ser sustentada de qualquer modo segundo uma concepção substancialista, dadas as contradições que daí se seguiriam e que Nāgārjuna visa apontar, particularmente em MMK.1.10: “Se as coisas não existissem sem essência, a frase ‘quando isso existir, então aquilo será’ não seria aceitável” (Nāgārjuna, 1995, p. 4). O que, a nosso ver, significa que, mesmo para a causalidade transitiva, x→y, ser concebível, é preciso aceitar a dependência mútua da causa e de seu efeito (pois, seguindo MMK.1.5, como as condições poderiam ser condições de algo, enquanto esse algo não viesse a ser?), e portanto, x↔y. O que significa para nós também que, se se admite que os planos da verdade convencional e última são a base dos ensinamentos das QNV e da vacuidade, respectivamente, então é preciso concluir que esses planos, por se encontrarem em uma relação de causalidade com os ensinamentos que se baseiam neles, são, eles mesmos, vazios.
- 14Ferraro, 2013a, p. 213.
- 15Assim, independentemente da resposta de Ferraro (2014) à objeção de Garfield e Siderits (2013, p. 662) quanto à totalidade poder ser não vazia se os dharmas são vazios, parece-nos que a objeção de que atribuir essências já é individualizar impossibilitaria que a totalidade pudesse ser uma essência a qual não pudesse ser criticada da mesma forma que as demais por Nāgārjuna.
- 16No que estamos de acordo com Tsong Khapa, quando este afirma que “vir à existência através da dependência mútua é o modo pelo qual as coisas existem, mas não há modo delas existirem inerentemente” (Tsong Khapa, 2006, p. 71).
- 17Nesse sentido, concordamos com Garfield e Siderits, quando estes defendem, em oposição a Ferraro, que “possa haver coisas que tomam sua natureza de outras coisas […] sem que haja coisas que têm naturezas intrínsecas” (Garfield e Siderits, 2013, p. 660.) e que, por mais que seja difícil abandonar uma concepção “metafísica realista” da verdade (quer dizer, uma concepção na qual a verdade tenha em seu fundamento uma natureza intrínseca), é justamente o abandono dessa compreensão que é fundamental para que seja possível compreender Nāgārjuna.
- 18Cf. também Tsong Khapa, 2006, p. 10.
- 19Tal como Ferraro supõe que seja necessário, deixando particularmente clara a sua pressuposição ao indagar-se “como pode a ‘pura convencionalidade’ existir, sem uma base real a partir da qual o convencional possa ser definido desse modo?” (Ferraro, 2013b, p. 205), usando “real” praticamente como sinônimo de “substancial”.
- 20Nāgārjuna, 1995, Cap. XXV, §24.
- 21O que também nos permite compreender porque a argumentação de Nāgārjuna só pode operar pela redução ao absurdo da posição essencialista; pois, não podendo demonstrar que a compreensão das coisas como vazias de essência é absolutamente necessária, posto que se trata apenas de uma verdade relativa, resta apenas mostrar como concebê-las de qualquer outra forma – quer dizer, concebê-las como dotadas de essência – só pode levar ao absurdo -, o que é bastante diferente de supor que haja qualquer prova positiva e definitiva de que as coisas sejam vazias, que justificaria adotar essa tese como uma posição.
- 22Nāgārjuna, 1995, Cap. XXV, §§19-20.
- 23Searle, 2006.
- 24“Todos os fenômenos têm que ou ter autoexistência ou não ter autoexistência. […] Todos os fenômenos que são o tema desse tratado são similares ao nirvana porque todos os fenômenos são desprovidos de existência inerente” (Nāgārjuna, 1987, p. 79, §2, tradução nossa).
Referências
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- ______. “The Fundamental Wisdom of the Middle Way”. Tradução: Jay L. Garfield. New York, Oxford University Press, 1995.
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- MMK Mūlamadhyamakakārikā
- QNV Quatro Nobres Verdades
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2016
Fonte: Scielo.br