E quanto a reconhecer o que somos naturalmente, ou outra forma de dizer “o que sou eu”, na tradição Zen existe uma forma de questionar, um koan particularmente bonito: Qual a tua face original, aquela antes dos teus pais nascerem?
Por Margarida Cardoso
Somos espaço e brilho
Qual é a minha prática?
A verdade da vida não é uma meta a alcançar num determinado momento no futuro; é a realidade do passo dado neste preciso instante. Pensar na realidade como uma linha reta, uma progressão linear do princípio ao fim, de causa a efeito, da ideia à realização, é um erro. A realidade é um círculo infinito, e cada ponto da sua circunferência é ao mesmo tempo o centro, o ponto de partida, e o ponto de chegada. (Hogen Yamahata, On the Open Way)
Nos encontros face a face com um professor zen, apresentamo-nos dizendo o nome e o que praticamos, e sempre achei essa forma de apresentação muito poderosa. “Chamo-me Margarida e a minha prática é…” e posso seguir uma narrativa conhecida, dizer o que é expetável e conforme, mas também posso parar e refletir sobre qual é autenticamente a minha prática. Qual é a minha prática? é em si um koan, um questionar incisivo e necessário.
Um dia fizeram-me essa pergunta, de uma forma ligeiramente diferente, “o que é para ti a meditação?” e depois de uma pausa a resposta que surgiu foi “uma intimidade com o momento”. Podemos fazer-nos estas perguntas várias vezes e talvez obter respostas diferentes. Parar e questionar como se fosse a primeira vez é abrir-se a um campo de possibilidades e de autenticidade. Elizabeth Mattis-Namgyel em “O Poder de uma Pergunta Aberta” fala da energia criativa que se apresenta a qualquer momento da nossa experiência. E o que acontece se nos habituarmos a estar abertos? Podemos ficar no limiar da pergunta como à beira de um abismo… ou podemos confiar e soltar. Recordo especialmente a suavidade e humildade de Ajahn Nyanarato, do mosteiro Amaravati, como um exemplo desta prática de estar no presente, de escutar como se fosse a primeira vez e de responder a partir dessa presença.
Enquanto praticantes, algumas pausas e algumas imagens ou temas entrelaçam-se ao longo do caminho, tecendo uma mitologia pessoal. E quanto a este caminho, acho útil ainda o vocabulário usado por Richard Davidson: uma prática de desconstrução e construção. Desconstrução como questionamento da nossa visão das coisas. Construção como reconhecimento do que somos naturalmente.
Já temos tudo o que precisamos
Há mais de vinte anos atrás, em 1999, estava em Salt Lake City por razões completamente desinteressantes, e provavelmente a única coisa que ficou dessa viagem foi a visita a um Centro Zen onde escutei pela primeira vez o ensinamento de um professor da linhagem de Maezumi Roshi “ao vivo”. Era um professor de origem holandesa, Tenkei Coppens, entretanto responsável pelo mosteiro Zen River, na Holanda, e o tema da dharma talk foi “já temos tudo o que precisamos”. Iniciar um caminho de procura pode surgir de um sentimento de inaptidão para estar no mundo (para mim sei que foi), pode surgir da ideia de falta, alguma coisa nos falta, ou estamos em falta. Relembrar que não há nada a adquirir, pois já temos o que precisamos, e que a nossa confusão e neurose é o terreno fértil do caminho, pode trazer alguma sobriedade e clareza.
Podes ler este artigo na íntegra na revista #2 de Budismo, uma resposta ao sofrimento